para quem quer se soltar, invento o cais
Bom dia!
Essa cartinha está sendo escrita em condições sub-ótimas: polegares opositores batucando num teclado estreito demais, wi-fi sem funcionar (talvez por isso eu esteja escrevendo agora!), as cidades passando velozes por mim enquanto rumo ao norte (ponto cardeal, infelizmente não a região), o fone literalmente por um fio. A parte boa é que do meu lado esquerdo não sentou ninguém, do lado direito ainda consigo ver o mar com seus barquinhos. Ouço o Quebra Azul, um álbum que embalou minha adolescência, e me sinto em outro tempo, não fosse a máscara que insiste em bagunçar ainda mais meus cabelos (pela primeira vez desde o início da pandemia, estou usando uma máscara Aura em vez das minhas PFF2 azuis companheiras e, realmente, ela é muito muito boa.)
Hoje acordei em casa, fui pra faculdade, fiz prova, voltei pra casa, fiz a mala e agora estou num ônibus indo pra São Paulo encontrar minha família. Meu irmão faz onze anos amanhã. Segunda acordarei em casa de novo, como se nunca tivesse saído.
Sábado de manhã acordei em casa, sai pra correr, encontrei um amigo do Rio pro café da manhã, conversamos sobre as impressões dele sobre Floripa, contei da passagem da cantora Lorde pelo município de Governador Celso Ramos, mostrei pra ele a faculdade com seus mosaicos. Depois disso, cada um voltou pra sua casa, eu caminhando e ele de avião. Como se nunca tivessemos saído.
Simplesmente não me acostumo com a capacidade do ser humano de se locomover. Nas condições e companhias adequadas, posso andar por uma dezena de quilômetros. Posso pegar um ônibus para um bairro cujas esquinas não sei a onde levam. Em outra economia, posso pegar vôo para um lugar cujos traços nas placas não lembram em nada as letras que aprendi a ler.
Ano passado, parti no que considero minha empreitada mais ousada. Parti para uma cidade conhecida porém sem que ninguém me conhecesse. E olha que nela tem catorze vezes mais gente que a minha cidade.
Partindo em busca do desconhecido, me sentia a protagonista de algo (pela rede de privilégios ao meu redor, admito que esse "algo" muitas vezes não passava de uma novela do Manoel Carlos). Meses depois, percebi que além de estrelar em um romance ~coming of age~, eu era também sua autora. Tinha o poder de escolher a dedo (ainda que inconscientemente) o que revelar de mim, os traços, os gostos, aparar as arestas como um designer mexendo no Blender. Não só escolher o que revelar, mas também, no meio do caminho, escolher o que se ser.
Na última cartinha, falei sobre como na volta ao presencial perdemos um pouco desse poder de decidir o que aparece de nós, e acho que na volta pra casa aconteceu algo parecido. É muito fácil decidir quem quero ser e testar coisas diferentes num contexto em que eu também sou nova. Mais complicado é se olhar num espelho com delay, perceber o quanto do que se foi não se é mais, encarar os contrastes entre quem foi e quem ficou, ser meu próprio navio de Teseu, paradoxo escondido na areia.
Sempre tenho dificuldade em concluir as coisas, as atividades interrompidas, as sílabas picotadas (infelizmente nem sempre procede que pra bom entendendedor meia palavra bas) e, com os textos não é diferente. Para alguns, o papel em branco é o maior inimigo. Arranhar a folha com grafite ou ponta seca de esferográfica. Para mim, o complicado é lidar com a folha já preenchida. Sou incapaz de rever os números e as fórmulas que escrevi e achar o erro crasso, não importa quantas vezes reveja, vou continuar achando que está tudo certo como dois e dois são cinco. Também não consigo sustentar minhas ideias (assunto recorrente na terapia), ter um pensamento e persegui-lo até o final, seguir o fio da meada para atravessar o labirinto. Que bom que as palavras, assim como eu, podem andar por aí, serem feitas e desfeitas.