mas a vida é real e de viés
Bom dia, pessoal,
Há um mês e meio, mais ou menos, minhas aulas voltaram ao presencial. Dentre os muitos aspectos da minha vida que mudaram com retorno, algo que me chama a atenção é ser obrigada a ver gente (e, além disso, ser vista) regularmente.
Nos meses precedentes, tudo que a maioria das pessoas viam de mim eram frames rigorosamente selecionados. Mandar quinze fotos minhas de ângulos praticamente iguais para alguma amiga escolher a melhor, postar foto de um dos meus vinis mesmo que 99% das vezes só escuto spotify, um trecho de algum livro cult, o prato mais bonito. Não é sobre ser uma pessoa diferente da real, mas de expor apenas o que convém, o que achamos bonito ou interessante em nós mesmos.
Agora não tem mais isso. Depois de três semestres de aulas online, voltei a ter que estar presente todo dia. Eu e meus colegas finalmente nos conhecemos sem nenhum glamour. A máscara (sigo firme com a PFF2 presa atrás da cabeça) me deixa com o que minha mãe chama de "orelhinha do Lula”, e, somada à umidade, deixa meu cabelo completamente amorfo. O frio me obriga a vestir camadas e camadas de casacos sem coesão nenhuma (e, o pior, continuar com frio mesmo depois do desapego estético). A privação de sono faz as olheiras transparecerem por trás das lentes embaçadas. Sem poder escolher o que mostrar, mas livre da preocupação de estar constantemente escolhendo o que esconder.
Li uma vez um tweet dizendo que a pandemia era um trauma geracional e que era nosso dever conversar sobre isso e se curar coletivamente, para evitar que nossas sequelas psicológicas respinguem na próxima geração. Do ponto de vista técnico, não sei se é isso mesmo, mas fez muito sentido quando eu li. Não foi um período fácil para mim (e olha que fui constantemente protegida e amparada por uma rede de privilégios (e um pouco de sorte)) e nem para ninguém. Cada um com seus mortos e caminhos tortos se esforçando para colocar ou manter as coisas no lugar. Acho que é importante durante um processo de reconstrução, admitirmos que o quão grande foi o estrago.
Fiz estágio (como estudante do técnico em química) num atelier de conservação e restauração e lá aprendi que as análises químicas feitas do pigmento não eram para que os restauradores escolhessem tintas com a mesma composição, e sim o contrário. Por mais que seja contra-intuitivo, escolhiam materiais distintos para que quem analisasse a obra depois pudesse perceber “ah, a obra sofreu algum dano, por isso essa parte é um restauro”
Existe uma arte japonesa chamda kintsugi, que, resumidamente, consiste em juntar a cerâmica quebrada de forma que o "rejunte", normalmente de cor metálica, passe a fazer parte da obra (o nome da arte significa literalmente "emenda de ouro"). Novamente, deixar claro que de fato houve uma ruptura. Me permitindo atuar como a cola dourada, copio e colo aqui dois fragmentos sobre essa arte.
O primeiro da newsletter da Cristal, que por sorte é minha conhecidamiga
“A ideia não é disfarçar que a caneca quebrou, mas deixar aparente sua história, suas falhas, sua recomposição com uma resina misturada com pó de ouro entre as peças. É interessante olhar pra essa técnica mais que um ode ao que já existe, mas também como um reconhecimento da construção da gente mesmo, pedaço a pedaço.”
E o segundo é esse poema da Maria, que não conheço mas escreve muito.
Em alguma oficina de cerâmica que fiz quando criança, aprendi que é muito difícil juntar dois pedaços de argila lisos, não importa o quanto se molhe. Para que constituam uma peça única, primeiro é necessário arranhar as superfícies de contato com uma esteca e, só depois colar os pedaços. É através das ranhuras que as coisas se encaixam. E acho que é através das faltas que as pessoas se conectam.
A seção de Indicações da Semana segue em hiato porque parece que não estou consumindo nada de cultura, músicas, filmes, livros, nada nada.
Muito bom poder compartilhar as coisas com vocês,
Um abração e até semana que vem!
Se cuidem,
Laura
p.s. aproveitando o embalo da cartinha passada, temática de aniversários, quero ocupar esse rodapé para desejar tudo de bom para o meu amigo Ivan, que sempre apoiou muito as cartinhas, seja nos bastidores, sejam literalmente escrevendo (e enviando!) metade de uma edição.